O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira, 26 de junho, por uma maioria de oito votos a três, que as chamadas big techs — empresas de tecnologia que operam grandes plataformas digitais — podem ser responsabilizadas judicialmente pelo conteúdo publicado por seus usuários na internet. A decisão representa uma mudança significativa na interpretação do Artigo 19 do Marco Civil da Internet, legislação de 2014 que vinha sendo considerada uma das bases da regulação da internet no Brasil.
O julgamento, que se estendeu por doze sessões, envolveu um amplo debate entre os ministros sobre os limites da liberdade de expressão, a responsabilidade das plataformas digitais e os mecanismos de proteção contra abusos e crimes cometidos online. Até então, o entendimento predominante era de que as plataformas só poderiam ser responsabilizadas judicialmente caso se recusassem a remover conteúdos ofensivos ou ilegais após determinação expressa da Justiça. Com a nova decisão, essa proteção é flexibilizada, permitindo que empresas como Google, Meta e outras possam ser alvo de ações judiciais mesmo antes de uma ordem judicial formal.
A mudança preocupa as empresas do setor. Em notas públicas divulgadas após o julgamento, Google e Meta expressaram receios quanto ao impacto da decisão sobre a liberdade de expressão e a viabilidade da moderação de conteúdo em larga escala. Segundo essas empresas, o novo entendimento pode levá-las a remover preventivamente conteúdos que ainda não tenham sido analisados pela Justiça, criando um ambiente de autocensura nas redes sociais e demais serviços digitais. Além disso, alegam que o aumento da responsabilidade pode comprometer a neutralidade das plataformas, forçando decisões arbitrárias sobre o que pode ou não permanecer online.
Do ponto de vista jurídico, o Supremo argumentou que a nova interpretação não significa uma responsabilização automática ou indiscriminada das plataformas, mas sim uma adequação à realidade atual da internet, na qual o volume e o impacto das postagens exigem mais diligência das empresas em coibir abusos. Segundo os ministros que votaram pela flexibilização do artigo, a interpretação anterior favorecia a impunidade, sobretudo em casos de discursos de ódio, desinformação e ataques à dignidade de indivíduos ou grupos vulneráveis.
O relator do caso, ministro Dias Toffoli, defendeu a nova interpretação como necessária diante do “poder estruturante” que as plataformas exercem no debate público e na formação da opinião coletiva. Para ele, a atuação das big techs não pode ser encarada apenas como técnica ou neutra, já que seus algoritmos influenciam diretamente o alcance e a visibilidade de informações, moldando a forma como as pessoas interagem e se informam. Outros ministros que acompanharam o voto também ressaltaram a importância de se garantir mecanismos mais eficazes para a proteção de direitos fundamentais no ambiente digital.
A decisão do STF tem repercussões diretas em casos judiciais futuros e poderá servir como base para ações civis contra plataformas que, mesmo sem ordem judicial, deixarem de agir diante de conteúdos manifestamente ilegais. Ao mesmo tempo, a Corte ressaltou que cada situação deverá ser analisada de forma individualizada, levando em conta as circunstâncias específicas e a conduta da plataforma em relação ao conteúdo questionado. Não haverá, portanto, uma regra geral de responsabilização automática, mas sim um parâmetro mais flexível para o Judiciário avaliar a atuação das empresas.
Especialistas em direito digital avaliam que a decisão coloca o Brasil em um novo patamar no debate sobre regulação das plataformas, aproximando-se de legislações como a da União Europeia, que já impõem maiores responsabilidades às empresas quanto à moderação de conteúdo. Ao mesmo tempo, alertam que o país ainda carece de uma legislação específica sobre o tema, o que pode gerar insegurança jurídica tanto para as empresas quanto para os usuários.
No Congresso Nacional, a decisão do STF deve repercutir nas discussões sobre o chamado “PL das Fake News”, que trata justamente da regulação das plataformas digitais e da responsabilização por desinformação. O projeto de lei, ainda sem previsão de votação, tem enfrentado forte resistência de setores ligados à tecnologia e também de parlamentares contrários a uma regulação mais rígida.
Enquanto isso, a decisão do Supremo começa a reconfigurar o cenário jurídico da internet no Brasil, marcando um ponto de inflexão na maneira como o país encara a liberdade de expressão, a responsabilidade das plataformas e os desafios da comunicação digital em massa. A partir de agora, as big techs terão que rever suas políticas internas e reforçar seus mecanismos de moderação, sob o risco de enfrentar sanções judiciais mesmo sem que haja uma ordem direta da Justiça. O impacto, tanto na forma de uso das plataformas quanto na atuação das empresas, ainda será medido nos próximos meses.